meio nu
meio não
Palavra quase à toa
outro dia eu rezei
eu rezei à Carlos Drummond de Andrade
para me confessar sobre o uso de determinada palavra num poema meu
não que lhe tivesse feito nem à língua alguma ofensa com aquele uso
somente que me pareceu o Carlos um bom ouvinte
discreto
correto
tanto quanto conhecedor desses pequenos crimes
certamente
e achei também e por isso que com pouco que eu dissesse
ele muito seria capaz de imaginar
precisamente
senão que melhor
a situação toda
e me absolveria
certamente
eu falava da palavra que eu usei
uma palavra muito bonita eu achei e acho
mas cujo o caso é que
quase que eu posso dizer que
dela eu não conheço o significado
digo
não
eu conheço de ver passar
conheço o suficiente para a ter usado sem boçalidade
no poema ficou justa
e corretamente um pouco suspensa
a beleza da palavra para mim é indiscutível
e eu chequei no dicionário
só que nunca chegamos a nos conhecer de fato consumado
e muitas vezes quando eu leio meu poema eu tenho mesmo que voltar ao dicionário
para perguntar da palavra
metida lá quase no fim do poema
como palavra ouvida em conversa noutra língua e que se entende pelo contexto
não por ela mesma
e eu argumentei com o Carlos
que não é que eu a desconheça
eu conheço até muito talvez
de ver passar
conheço independente dela mesma
por conta minha própria
eu a conheço de ver passar
como uma mulher muito bonita que eu visse passar de vez em quando
e muito a admirasse
mas a ela nunca chegasse
e assim mesmo ficasse
desconhecida
porém reconhecida
e que eu a achava ainda mais bonita assim
des-íntima
nesse anonimato elegante
esses decotes nos seus significados
o seu caminhar de pés descalços pelos calçamentos semânticos
eu bem sabia que o Carlos bem me entenderia
nem precisei lhe contar qual era a palavra para que ele a visse
e ficamos
eu e Carlos
num banco de praça
vendo-a passar
muito linda e distraída nos sentidos.